Resumo da notícia
- Pesquisadores brasileiros confirmaram que a linhagem do fungo Batrachochytrium dendrobatidis, causador da quitridiomicose, originou-se no Brasil, desmentindo teorias que apontavam a Ásia como local de origem.
- O fungo Bd-Brazil estava presente em amostras de anfíbios preservadas em museus desde 1916, revelando que a ameaça global já existia há mais de um século no território brasileiro.
- O estudo da Unicamp analisou mais de 2 mil espécimes de anfíbios de museus ao redor do mundo, cruzando dados genéticos e históricos para comprovar a antiguidade e prevalência da linhagem no Brasil.
- A descoberta reforça a importância da conservação da biodiversidade brasileira e ajuda a entender a disseminação global da doença que já afetou centenas de espécies de anfíbios.
A história começa bem antes do que imaginávamos. Enquanto cientistas ao redor do mundo tentavam entender porque populações inteiras de sapos, rãs e pererecas estavam desaparecendo, a resposta estava escondida em museus brasileiros desde 1916. Um fungo microscópico, silencioso e letal, já habitava nosso território décadas antes de se tornar uma ameaça global.
O vilão da história tem nome científico complicado: Batrachochytrium dendrobatidis, chamado simplesmente de Bd pelos pesquisadores. Esse fungo quitrídio causa uma doença devastadora chamada quitridiomicose, que já levou ao declínio de pelo menos 500 espécies de anfíbios anuros ao redor do planeta.
Mas não é qualquer linhagem do fungo que está no centro desta descoberta. É especificamente a Bd-Brazil, uma variante genética que, como o nome sugere, nasceu aqui. E um estudo publicado recentemente na revista Biological Conservation finalmente comprova o que pesquisadores brasileiros suspeitavam há anos: essa linhagem se originou mesmo no Brasil e se espalhou para o mundo todo.
A polêmica sobre a origem do fungo
A jornada para confirmar a origem brasileira da linhagem não foi simples. Em 2012, quando os cientistas identificaram essa variante pela primeira vez no país, batizaram ela de Bd-Brazil. Parecia óbvio, certo? Nem tanto.
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Em 2018, um artigo na prestigiada revista Science contestou essa origem. Os autores argumentaram que a linhagem poderia ter vindo da Península Coreana, propondo até renomear o genótipo como Bd-Asia-2/Bd-Brazil. Foi uma reviravolta que colocou em xeque a hipótese brasileira.
Mas os pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) não desistiram. Liderados por Luís Felipe Toledo, professor do Instituto de Biologia, e com trabalho de doutorado de Luisa P. Ribeiro, a equipe reuniu evidências de múltiplas fontes para resolver essa controvérsia de uma vez por todas.
“Esse genótipo tem alta prevalência em diferentes espécies nativas do Brasil, com registros muito antigos”, explica Ribeiro, primeira autora do estudo apoiado pela FAPESP. “Quando olhamos em outros lugares, os registros são bem mais recentes e ocorrem apenas em rãs-touro e outras espécies exóticas.”
O trabalho de detetive científico
Para provar que a Bd-Brazil realmente se originou aqui, os pesquisadores viraram verdadeiros detetives. Eles cruzaram dados de várias fontes: literatura científica antiga, amostras de anfíbios preservados em museus desde o século 19, análises genéticas de rãs criadas em ranários brasileiros e investigações sobre o comércio internacional de carne de rã.
Colaboradores estrangeiros examinaram nada menos que 2.280 espécimes de anfíbios coletados entre 1815 e 2014, guardados em museus de zoologia ao redor do mundo. Quarenta deles testaram positivo para o Bd.

O registro mais antigo de infecção? Um sapo da espécie Alytes obstetricans, coletado em 1915 nos Pireneus franceses. Mas o segundo mais antigo veio de um sapo brasileiro da espécie Megaelosia goeldii, presente no Rio de Janeiro, coletado em 1964.
Aqui está o detalhe crucial: a Bd-Brazil já estava presente no Brasil em 1916, duas décadas antes das primeiras rãs-touro norte-americanas chegarem ao país. Isso já tinha sido indicado em um artigo de 2014 na Molecular Ecology, mas agora as evidências ficaram ainda mais robustas.
As rãs-touro: vetores involuntários da tragédia
Se o fungo é brasileiro, como ele se espalhou pelo mundo? A resposta está nos ranários e no apetite global por carne de rã.
A rã-touro (Aquarana catesbeiana), espécie norte-americana, foi introduzida no Brasil pela primeira vez em 1935. Uma segunda população chegou nos anos 1970. Os criadores brasileiros descobriram que esse animal de grande porte e carne saborosa era perfeito para a aquicultura comercial.
O problema é que as rãs-touro criadas em ranários brasileiros carregavam a Bd-Brazil. E quando essas rãs começaram a ser exportadas para diversos países, levaram o fungo junto.
Os pesquisadores analisaram impressionantes 3.617 rotas do comércio internacional de carne de rã, envolvendo 48 países. Apenas 12 foram identificados como exportadores, 21 como importadores e 15 faziam os dois papéis.

O Brasil exportou diretamente para os Estados Unidos entre 1991 e 2009. Os americanos, por sua vez, exportaram para a Coreia do Sul em 2004 e 2008. A linhagem foi detectada em todos esses países, mas sempre em datas posteriores à sua presença confirmada no Brasil.
“Não poderíamos identificar exatamente a linhagem em uma grande amostra de anfíbios depositados em museus, uma vez que a conservação nem sempre é a desejável para manter essa informação”, reconhece Toledo. “Por isso, identificamos apenas presença ou ausência do fungo nesses indivíduos e buscamos outras evidências que pudessem indicar ou não a origem brasileira.”
Por que isso importa?
A Bd-Brazil é prevalente no Brasil, com mais da metade das ocorrências em alguns ranários. Paradoxalmente, ela é menos virulenta que outras linhagens, como a Bd-GPL, provavelmente originária da Ásia.
Aqui no Brasil, o fungo está presente tanto em criações comerciais quanto na natureza. Algumas espécies nativas até carregam o patógeno sem desenvolver a doença. Mas quando exportado para outros ecossistemas, o fungo encontra anfíbios sem defesas evolutivas contra ele.
O resultado? Declínio catastrófico de populações em diversos países.
Ribeiro, que atualmente realiza pós-doutorado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ressalta a importância da descoberta: “Mesmo sem sabermos a linhagem em todos os casos, encontramos registros mais antigos do que os reportados anteriormente na literatura e apresentamos uma revisão de registros históricos de Bd no mundo.”
O alerta dos cientistas
O estudo, que integra o projeto “Da história natural à conservação dos anfíbios brasileiros”, traz um recado urgente para autoridades sanitárias e ambientais globalmente.
Os autores ressaltam a necessidade urgente de medidas de prevenção robustas: controles rígidos de importação, triagem sistemática de patógenos em animais comercializados e protocolos rigorosos de quarentena. Tudo isso com regulamentação e monitoramento em escala global para salvaguardar as espécies nativas.
A descoberta também levanta questões sobre nossa responsabilidade. Se um patógeno brasileiro se espalhou pelo mundo através do comércio, que outros riscos invisíveis podem estar viajando nas cargas de animais vivos que cruzam fronteiras diariamente?
Por enquanto, os cientistas conseguiram resolver um mistério de décadas. A Bd-Brazil nasceu aqui, cresceu aqui, e daqui partiu para se tornar uma ameaça global aos anfíbios. Resta agora usar esse conhecimento para proteger as espécies que ainda restam.
Sobre a pesquisa: O estudo “Origin and global spread of an endemic chytrid fungus lineage linked to the bullfrog trade” foi publicado na revista Biological Conservation com apoio da FAPESP. O trabalho contou com colaboração internacional e analisou milhares de espécimes preservados em museus ao redor do mundo.