Pecuária leiteira pode consumir 1.058 litros de água por quilo
Foto: Gisele Rosso/Embrapa

Quando você toma um copo de leite no café da manhã, provavelmente não imagina que aqueles 200ml carregam uma história bem mais complexa. Por trás de cada litro produzido, existe um consumo de água que pode variar de 299 a 1.058 litros. Uma diferença que assusta e, ao mesmo tempo, mostra o potencial de melhoria no setor.

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Pesquisadores brasileiros e alemães mergulharam fundo nessa questão. Eles analisaram 67 fazendas leiteiras em Lajeado Tacongava, no nordeste gaúcho, e fizeram algo impressionante: testaram 192 combinações diferentes de práticas e cenários climáticos para cada propriedade. O resultado? Um mapa detalhado que mostra exatamente onde os produtores podem economizar água.

O que realmente consome água na produção leiteira

A pegada hídrica na pecuária leiteira funciona como uma contabilidade invisível. Julio Palhares, pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste que participou do estudo, explica que esse conceito vai muito além da água que o animal bebe. “Temos que considerar a água usada diretamente na fazenda e também aquela consumida indiretamente no cultivo dos alimentos para o gado”, destaca.

Os cientistas dividiram essa conta em três categorias. A água verde — que vem da chuva e evapora durante o crescimento das plantas — representa impressionantes 98,8% do total em sistemas de pastagem. Depois vem a água azul, retirada de rios e poços, usada pelos animais e na limpeza. Por fim, a água cinza, que seria necessária para diluir os poluentes dos efluentes.

Boas práticas que fazem diferença real

As propriedades analisadas mostraram realidades bem distintas. Entre as 57 fazendas de pastagem, sete semi-confinadas e três confinadas, os números revelaram que o sistema de produção sozinho não define a eficiência. Uma fazenda a pasto pode ter pegada menor que uma confinada, dependendo de como é gerenciada.

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“Independentemente do modelo de produção, se gerenciado corretamente, ele pode ser ambientalmente amigável em relação à água”, afirma Palhares. Essa frase resume bem a descoberta central: não existe vilão, existe gestão ruim.

As combinações mais eficientes envolveram aumentos de 25% na produtividade de milho e soja — os principais alimentos do rebanho. Reduzir o consumo de água na lavagem da sala de ordenha também trouxe resultados significativos. Um litro a mais de leite por vaca ao dia já impacta positivamente os números. E o tratamento adequado dos efluentes reduziu drasticamente a pegada cinza.

O fantasma do aquecimento global

Mas tem um problema crescendo no horizonte. O estudo publicado na Science of The Total Environment mostra que as mudanças climáticas estão jogando contra os produtores. Temperaturas 1,5°C a 2,5°C mais altas fazem as vacas beberem mais água e prejudicam a produtividade do milho.

Foto: Gisele Rosso/Embrapa

“A cada ano, fica mais limitado aumentar os rendimentos das culturas devido aos efeitos das mudanças climáticas”, alerta o pesquisador. É uma corrida contra o tempo onde os produtores precisam melhorar a eficiência enquanto o clima trabalha na direção oposta.

A pegada hídrica azul deve aumentar entre 1% e 2% por causa do aquecimento global. Parece pouco, mas em uma atividade que já consome centenas de litros por quilo de leite, cada percentual conta.

Soluções de curto prazo existem

A boa notícia é que tem solução à vista. Aumentar os rendimentos de milho e soja seria a ação mais rápida para melhorar a eficiência hídrica. Como a água verde domina a conta (mais de 98% do total), qualquer ganho nas lavouras se reflete diretamente na pegada do leite.

Outras medidas também ajudam: otimizar o tamanho do rebanho, selecionar animais com melhor conversão alimentar, usar água de forma inteligente na limpeza das instalações. São mudanças práticas que muitos produtores já podem implementar.

O tratamento de efluentes merece atenção especial. “É crucial porque garante uma menor carga poluente, reduzindo a pegada hídrica cinza”, explica Palhares. Mesmo representando apenas 0,07% a 0,11% do total, essa fração pode crescer se mal gerenciada.

Conexão com os objetivos globais

Esse trabalho científico não acontece no vácuo. As medidas para reduzir a pegada hídrica nas fazendas conectam diretamente com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU para 2030. O ODS 2 fala de práticas agropecuárias resilientes. O ODS 12 trata de consumo e produção responsáveis. E o ODS 13 busca combater as mudanças climáticas.

São metas ambiciosas, mas os dados das 67 fazendas gaúchas mostram que o setor leiteiro pode contribuir significativamente. A variação de até 72% entre a menor e maior pegada hídrica (de 299 a 1.058 litros por quilo) demonstra o tamanho da oportunidade.

O que vem pela frente

O estudo seguiu as diretrizes do Manual de Avaliação da Pegada Hídrica e representa 81,7% das fazendas da bacia hidrográfica analisada — uma amostra robusta que permite extrapolar conclusões. Os pesquisadores geraram dados sobre eficiência hídrica que podem orientar políticas públicas e decisões de manejo.

Para os produtores, a mensagem é clara: eficiência hídrica não é luxo, é necessidade. Com o clima mudando e a pressão por sustentabilidade aumentando, quem não se adaptar vai ficar para trás. As ferramentas existem, o conhecimento está disponível. Falta colocar em prática.

A pegada hídrica média de 704 litros de água por quilo de leite pode parecer alta, mas os casos de sucesso mostram que dá para chegar nos 299 litros. É questão de combinar as práticas certas com gestão competente. E talvez, num futuro próximo, aquele copo de leite do café da manhã carregue uma história bem mais sustentável.