Resumo da notícia
- Micoproteínas produzidas a partir do micélio de fungos combinam alto valor nutricional, textura similar à carne e menor impacto ambiental, com mercado previsto para ultrapassar US$ 32 bilhões até 2032.
- Avanços em engenharia genética, como a técnica CRISPR-Cas9, e fermentação de precisão transformam fungos em fábricas celulares que produzem proteínas recombinantes com maior segurança alimentar e sustentabilidade.
- A produção dessas proteínas exige menos terra, água e emite menos gases de efeito estufa que a pecuária tradicional, podendo mitigar impactos ambientais da agricultura intensiva, como desmatamento e esgotamento dos recursos naturais.
- Ainda há desafios técnicos e regulatórios para expansão, incluindo a necessidade de melhorar sabor e textura, garantir segurança alimentar, padronizar valores nutricionais e regulamentar substâncias tóxicas em produtos fermentados.
Por décadas, as proteínas animais dominaram a dieta mundial. Agora, os fungos começam a conquistar espaço como protagonistas dessa transformação. Pesquisadores aplicam engenharia genética avançada e fermentação de precisão para transformar o micélio, a estrutura de sustentação do fungo, em micoproteínas que combinam alto valor nutricional, textura semelhante à carne e menor impacto ambiental. Projeções recentes indicam que o mercado global desses produtos deve ultrapassar US$ 32 bilhões até 2032.
Avanços em engenharia genética, como a edição de DNA por meio da técnica CRISPR-Cas9, aliados à eficiência da fermentação de precisão, permitem o desenvolvimento de micoproteínas com alto valor nutricional e potencial de produção em larga escala.
O pesquisador e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) André Damasio explica que essas tecnologias transformam fungos filamentosos e leveduras em verdadeiras “fábricas celulares”. Esses organismos produzem proteínas recombinantes — como as do leite, ovos e carne — com menor impacto ambiental e maior segurança alimentar. Empresas como Meati, Quorn e Enough já operam em escala industrial, focando no modelo B2B e promovendo mudanças importantes no setor alimentício tradicional.
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“A produção de micoproteínas exige menos terra e água, e emite menos gases de efeito estufa do que a pecuária convencional. Esse novo sistema de produção de alimentos pode mitigar os efeitos ambientais da agricultura intensiva, como o desmatamento, a degradação do solo e o esgotamento de recursos hídricos”, explica Damasio.
Desafios técnicos e regulatórios ainda travam expansão
Entretanto, para que essas proteínas ocupem lugar fixo nas prateleiras e nos pratos dos consumidores, a indústria precisa vencer barreiras importantes. As propriedades do micélio, como o seu alto teor de fibras e composição nutricional distinta das proteínas vegetais e animais, exigem mais investigação e adaptação tecnológica. Os cientistas trabalham para melhorar a textura, sabor e funcionalidade desses produtos para aplicações variadas na indústria alimentícia, como substitutos de carne e laticínios.
O analista e engenheiro agrônomo Gabriel Mascarin da Embrapa Meio Ambiente (SP) acredita que, além da aceitação pelo consumidor, a segurança e a regulamentação representam desafios cruciais. Estudos clínicos ainda não esclarecem completamente a biodisponibilidade dos aminoácidos presentes nas micoproteínas, sua contribuição à saciedade e os efeitos de longo prazo à saúde humana. O setor precisa urgentemente padronizar valores nutricionais e criar normas rigorosas para controle de toxinas e metais pesados, sobretudo diante da diversidade de substratos que os processos fermentativos utilizam.
“Do ponto de vista técnico, os obstáculos vão desde a engenharia genética de linhagens fúngicas até a otimização do bioprocesso e escalonamento, além da etapa de purificação dos produtos (o chamado ‘processamento downstream’). Pesquisadores aplicam novas ferramentas biotecnológicas para aumentar a eficiência das fábricas celulares”, conta Mascarin, ao informar que dados recentes mostram o avanço da engenharia de fungos e leveduras para produzir proteínas com funcionalidade semelhante às de origem animal.
Além disso, ferramentas de biologia sintética e tecnologias “ômicas” (como transcriptômica e proteômica) aceleram o desenvolvimento de linhagens mais produtivas e resilientes. A combinação de edição genética precisa com análises moleculares tem se mostrado promissora para superar gargalos na produção industrial.
Complemento sustentável, não substituto total da carne
Para a pesquisadora Paula Cunha da Unicamp, a aposta na biotecnologia fúngica não pretende eliminar a carne animal, mas oferece alternativas viáveis e acessíveis que diversificam a dieta e reduzem o impacto ambiental da produção de alimentos. Ao integrar essas micoproteínas às cadeias alimentares existentes, a indústria pode fortalecer a segurança alimentar global e aumentar a resiliência dos sistemas agroindustriais frente às mudanças climáticas e à pressão sobre os recursos naturais.
O futuro da alimentação humana pode estar cada vez mais ligado ao reino dos fungos. Se as pesquisas continuarem avançando e os cientistas superarem os desafios, as fábricas de células fúngicas poderão se tornar peças-chave na construção de um sistema alimentar mais sustentável, nutritivo e inclusivo.
Investimentos em fungos superam carne cultivada em € 169 milhões
Com tecnologia menos complexa e rápida entrada no mercado, a fermentação de biomassa fúngica, da qual o micélio faz parte, superou a carne cultivada em investimentos nos últimos cinco anos. O setor atraiu € 628 milhões contra € 459 milhões destinados à carne cultivada, conquistando a atenção de startups e investidores globais.
Micoproteínas derivadas do micélio, como as que as empresas Quorn, Meati e Eternal produzem, oferecem vantagens como alto teor proteico (entre 45% e 48%), riqueza em fibras (entre 22% e 35%), sabor neutro e textura semelhante à carne. Por isso, a indústria aplica esses ingredientes tanto em análogos de carne quanto em produtos híbridos. Que combinam proteína animal ou vegetal com micélio, ampliando sua aceitação entre consumidores não veganos.
No entanto, o micélio tem baixa solubilidade, o que limita sua aplicação em alimentos líquidos. Embora algumas empresas, como a Nature’s Fynd, tenham começado a explorar esse caminho com iogurtes à base de micélio.
Baixa emissão de carbono impulsiona crescimento do mercado
O cultivo de micélio se destaca por sua baixa emissão de CO₂, reduzida pegada hídrica e potencial de circularidade, ao empregar subprodutos como substratos. Apesar do elevado consumo energético, especialmente na fermentação submersa, seu impacto é menor que o da pecuária tradicional.
Analistas avaliam o mercado global de análogos de carne com micélio em US$ 7,2 bilhões, com projeção de crescimento anual de 10,78% até 2032. Já o setor de substitutos de laticínios, que também começa a explorar o uso do micélio, deverá crescer a uma taxa ainda maior, de 13,85% ao ano, atingindo US$ 32,38 bilhões até 2032.
Benefícios nutricionais comprovados, mas alertas permanecem
Do ponto de vista nutricional, as micoproteínas fornecem aminoácidos essenciais e minerais como zinco e selênio, embora não contenham vitamina B12 nem ferro. Estudos clínicos indicam que seu consumo pode ajudar a reduzir colesterol, melhorar a saciedade, controlar glicemia e até estimular a síntese de proteína muscular. Ainda assim, especialistas alertam para a necessidade de mais pesquisas sobre sua digestibilidade e potencial alergênico. Especialmente diante de reações adversas que consumidores de produtos da Quorn observaram.
Apesar da presença no mercado desde 1985, a aceitação das micoproteínas ainda enfrenta barreiras. Fatores como sabor, preparo e percepção de saúde determinam a disposição do consumidor em adotar o micélio na alimentação. No entanto, os cientistas acreditam que, com novas aplicações e avanços regulatórios, a tecnologia tem potencial para consolidar-se como peça-chave no futuro da alimentação sustentável.
Regulamentação exige avaliações rigorosas de segurança
Autoridades classificam produtos à base de micoproteínas, como os derivados do micélio, como “novos alimentos”. Assim, isso exige rigorosas avaliações de segurança antes da aprovação comercial. Embora a FDA dos Estados Unidos tenha aprovado seu uso em 2001, ainda não existem diretrizes específicas sobre ingestão diária, e nutricionistas não recomendam esses alimentos para crianças menores de três anos devido ao alto teor de fibras e baixa densidade energética.
Do ponto de vista produtivo, a seleção de cepas seguras, de rápido crescimento e com atributos sensoriais desejáveis tem sido crucial. Empresas preferem fungos filamentosos como F. venenatum e A. oryzae por seu alto rendimento proteico, embora cresçam mais lentamente do que leveduras. Tecnologias como engenharia genética e CRISPR/Cas9 melhoram a eficiência dos processos, permitindo o desenvolvimento de linhagens com características aprimoradas. Pesquisadores também exploram a incorporação de proteínas vegetais e microalgas para enriquecer o valor nutricional desses produtos.
Empresas como Quorn, Meati e The Better Meat Co. lideram a inovação com processos escaláveis e produtos versáteis, como a micoproteína Rhiza, que viabiliza desde linguiças até carnes vegetais secas.