Documentos judiciais revelaram participação oculta da Monsanto na redação do artigo. Anvisa utilizou estudo controverso na reavaliação do agrotóxico no Brasil
Foto: Wenderson Araujo/Sistema CNA/Senar

A revista científica norte-americana Regulatory Toxicology and Pharmacology despublicou oficialmente um artigo de 2000 que defendia a segurança do glifosato, agrotóxico mais utilizado no mundo. A decisão expõe problemas éticos, falta de integridade científica e levanta dúvidas sobre os resultados da pesquisa que influenciou políticas regulatórias em diversos países, incluindo o Brasil.

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Gary M. Williams, Robert Kroes e Ian C. Munro assinaram o estudo publicado em abril de 2000, que concluía que o glifosato não representava risco de desenvolvimento de câncer em humanos. No entanto, documentos internos da Monsanto divulgados em 2017 durante processos judiciais nos Estados Unidos, conhecidos como “Monsanto Papers”, revelaram que funcionários da empresa ajudaram a redigir o artigo sem o devido reconhecimento como coautores.

Em um e-mail de 2015, William Heydens, executivo da Monsanto, sugeriu repetir a estratégia adotada no artigo de 2000. “Uma opção seria manter os custos baixos fazendo nós mesmos a redação e eles apenas editariam e assinariam seus nomes, por assim dizer. Lembre-se que foi assim que lidamos com Williams, Kroes e Munro, 2000”, escreveu Heydens, segundo documentos judiciais.

O editor-chefe da revista, Martin van den Berg, destacou em comunicado de dezembro de 2025 várias “preocupações” e “problemas críticos” no estudo. Entre eles, a falta de clareza sobre os verdadeiros autores do texto e a ausência de menção ao envolvimento de funcionários da Monsanto, atualmente parte do grupo Bayer, na redação do artigo.

O artigo também baseou suas conclusões exclusivamente em estudos não revisados por pares e fornecidos pela própria Monsanto. Portanto, ignorando pesquisas já publicadas à época que contradiziam suas conclusões. Além disso, investigações indicam que os autores podem ter recebido compensações financeiras não divulgadas da empresa.

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Estudo influenciou regulamentação do glifosato no Brasil e no mundo

A pesquisa exerceu influência significativa em debates regulatórios sobre o uso de agrotóxicos globalmente. No Brasil, o artigo foi um dos estudos científicos citados no processo de reavaliação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que manteve a substância autorizada no país. O processo iniciou em 2008 e concluiu em 2019, quando a Anvisa determinou que o agrotóxico não causava prejuízos à saúde.

Pesquisadores Alexander Kaurov, da Universidade Victoria de Wellington, na Nova Zelândia, e Naomi Oreskes, historiadora da ciência da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, solicitaram formalmente a retratação do artigo. Em análise publicada em setembro de 2024, eles descobriram que o artigo está entre os 0,1% mais citados na literatura acadêmica sobre glifosato.

Van den Berg tentou, sem sucesso, obter esclarecimentos do único autor ainda vivo, Gary M. Williams. Robert Kroes faleceu em 2006 e Ian Munro em 2011. A despublicação seguiu uma análise cuidadosa das diretrizes do COPE (Committee on Publication Ethics), que regem o comportamento acadêmico.

Anvisa utilizou estudo controverso na reavaliação do agrotóxico no Brasil

O glifosato serve como base para mais de cem produtos disponíveis no mercado brasileiro, com uso em plantações agrícolas e também em jardins. Em 2015, durante o processo de reavaliação no Brasil, a IARC (Agência Internacional de Pesquisa em Câncer), ligada à OMS (Organização Mundial da Saúde), classificou a substância como “provavelmente cancerígena” em humanos.

Procurada pela imprensa, a Anvisa informou que “qualquer consideração seria necessário a avaliação da área técnica”. E destacou que o artigo em questão “não foi o único dado, pesquisa ou informação utilizada para avaliação da Anvisa”. A agência afirmou que, para o processo de reavaliação, analisa um conjunto extenso de dados e estudos relacionados ao tema.

Karen Friedrich, toxicologista do Grupo Temático de Saúde e Ambiente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), observa que a prática de “ghostwriting” aparece diversas vezes nos Monsanto Papers. Indicando que funcionários da Monsanto teriam escrito outros artigos assinados posteriormente por cientistas e publicados em revistas científicas.

Bayer afirma que glifosato é seguro e usado há mais de 40 anos

A Bayer, em nota enviada à imprensa, afirmou que o glifosato tem sido usado “com segurança e sucesso em todo o mundo há mais de 40 anos”. A empresa declarou ainda acreditar que “o envolvimento da Monsanto foi adequadamente citado nos agradecimentos”. E que “o consenso entre órgãos reguladores em todo o mundo que conduziram suas próprias avaliações independentes baseadas no peso das evidências é que o glifosato pode ser usado com segurança conforme orientado e não é cancerígeno”.

A Bayer adquiriu a Monsanto em 2018 por US$ 63 bilhões e herdou um passivo de mais de 67 mil processos judiciais nos Estados Unidos. Ações movidas por vítimas de câncer resultaram em bilhões de dólares em indenizações, e a empresa já pagou US$ 11 bilhões para resolver extrajudicialmente mais de 100 mil processos.

Em janeiro de 2024, um júri da Pensilvânia condenou a Bayer ao pagamento de US$ 2,25 bilhões após concluir que a Monsanto “não alertou sobre os perigos” do Roundup. A empresa aguarda decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre a admissibilidade de um novo recurso relacionado aos litígios do glifosato.

Especialistas pedem nova reavaliação do produto no país

Alan Tygel, membro da coordenação da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, afirma que a despublicação do artigo “coloca em xeque o próprio resultado da reavaliação da Anvisa”. Ele defende que a reavaliação de agrotóxicos no Brasil deve ser iniciada quando há informações científicas novas sobre os produtos que estão em uso. E propõe que a venda desses agrotóxicos seja liminarmente suspensa para proteger a saúde das pessoas.

Karen Friedrich também defende que “a Anvisa deveria colocar o glifosato em reavaliação novamente, porque as pessoas estão adoecendo e morrendo por conta desse agrotóxico”.

A despublicação reforça as suspeitas sobre os danos da substância à saúde humana. E abre caminho para novos questionamentos à comercialização do produto no Brasil e no mundo. O advogado Brent Wisner, que representou vítimas em processos contra a Monsanto, classificou o estudo como “o exemplo por excelência de como empresas como a Monsanto podem minar fundamentalmente o processo de revisão por pares através de ghostwriting, seleção tendenciosa de estudos não publicados e interpretações enviesadas”.