Pesquisadores brasileiros e franceses descobrem nos sambaquis da Amazônia evidências de transformações profundas na biodiversidade e nas práticas alimentares dos povos indígenas que habitaram a floresta há milhares de anos. Os monumentos de conchas e terra, construídos por populações coletoras e pescadoras, guardam segredos sobre espécies hoje esquecidas e práticas alimentares que cientistas buscam resgatar.

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A arqueóloga Gabriela Prestes Carneiro, pesquisadora do Museu Nacional de História Natural (MNHN) da França e coordenadora da missão arqueológica franco-brasileira, apresentou os achados iniciais durante o Fórum Brasil-França “Florestas, Biodiversidade e Sociedades Humanas”, realizado em outubro no auditório da FAPESP, em São Paulo.

Monumentos milenares funcionam como cápsulas do tempo

“Os sambaquis funcionam como locais de memória que povos originários visitaram, reconstruíram e reocuparam ao longo de milhares de anos, desde cerca de 3 mil anos atrás. Essa longa duração nos permite estudar as transformações na biodiversidade e nas práticas alimentares”, explica Carneiro à Agência FAPESP.

Os pesquisadores concentram seus esforços no sítio arqueológico do Munguba, localizado em área de várzea entre os rios Tapajós e Xingu, no Baixo Amazonas. Um pescador descobriu o local, e desde 2022 a equipe estabelece contato com as famílias que vivem no entorno. As primeiras datações indicam que os sambaquis remontam a cerca de 3.500 anos.

Conchas preservam microfauna e revelam biodiversidade do passado

As conchas que constituem os sambaquis liberam carbonato de cálcio durante sua degradação natural. O composto químico preserva restos orgânicos de animais e plantas, permitindo que os cientistas estudem sementes, grãos, escamas de peixes e vestígios de anfíbios, serpentes, mamíferos, morcegos e roedores presentes nos sedimentos.

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Gabriela Prestes Carneiro, pesquisadora do Museu Nacional de História Natural da França, durante o Fórum Brasil-França, na FAPESP: sambaquis são locais de memória que foram visitados, reconstruídos e reocupados desde cerca de 3 mil anos atrás. Foto: Daniel Antônio/Agência FAPESP

“A análise dessa microfauna possibilita compreendermos a transformação daquele ambiente ao longo do tempo”, destaca a arqueóloga.

Espécies esquecidas aparecem nas escavações

Os pesquisadores identificaram nos sambaquis diversas espécies de moluscos que atualmente ninguém consome. O uruá (Sultana sultana), por exemplo, era picado, cozido e utilizado no preparo de farinha pelas populações tradicionais. “Muitas dessas espécies permanecem na memória das populações tradicionais da região”, relata Carneiro.

A equipe encontrou, pela primeira vez em sítio arqueológico, mandíbula e vértebras de peixe-boi (Trichechus). Os pesquisadores também descobriram restos de peixes como bacus-pedra (Oxydoras niger e Doradidae) e tamoatá (Hoplosternum littorale), espécies com muitas espinhas que raramente aparecem nos mercados regionais hoje.

“Essas espécies estão muito presentes nos sítios arqueológicos, mas hoje raramente as encontramos nos mercados de peixes”, observa a coordenadora da pesquisa.

Dados arqueológicos impulsionam reintrodução de alimentos tradicionais

Carneiro, responsável pela coleção de peixes do MNHN, aponta que transformações sociais e ambientais modificaram as práticas alimentares dos povos tradicionais da Amazônia. A carne de peixe cede espaço para frango congelado e alimentos industrializados.

Pesquisadores de etnobiologia e nutrição aproveitam os dados dos estudos arqueológicos para desenvolver projetos que reintroduzem plantas consumidas no passado na merenda escolar de escolas públicas, como no município de Tefé, no Amazonas.

“Podemos utilizar esses dados para reintroduzir não só alimentos, mas também práticas alimentares do passado no presente”, avalia a arqueóloga.

Corrida contra o tempo: sítios arqueológicos ameaçados

Os pesquisadores enfrentam uma corrida contra o tempo. Navios cargueiros que transportam principalmente soja passam muito próximos às margens do rio onde os sambaquis se localizam, ameaçando os sítios arqueológicos.

“A passagem desses navios também destrói os materiais dos pescadores ribeirinhos que colocam suas armadilhas próximas desses sítios arqueológicos”, alerta Carneiro.

A missão arqueológica conta com apoio inicial do Instituto Serrapilheira e, atualmente, do Ministério da Europa e dos Negócios Estrangeiros da França. O Fórum Brasil-França foi organizado pelo MNHN em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e a FAPESP, reunindo especialistas para discutir biodiversidade florestal, ecossistemas e suas relações com sociedades humanas do passado e do presente.