Resumo da notícia
- Em 2023, o Brasil enfrentou eventos climáticos extremos, incluindo a maior chuva em 24 horas na história, seca inédita na Amazônia e ciclones devastadores no Rio Grande do Sul, causando mais de 120 mortes.
- Estudo liderado pela professora Luana Pampuch revela que a combinação do El Niño com o aquecimento global intensificou esses desastres, criando condições atmosféricas propícias para eventos extremos.
- No litoral norte de São Paulo, Bertioga registrou 682,8 mm de chuva em 24 horas, resultado do encontro entre massa de ar frio e águas atlânticas anormalmente quentes, que gerou chuvas orográficas intensas e graves danos.
- A seca histórica na Amazônia, agravada pelo El Niño, baixou o nível do rio Amazonas a mínimos que prejudicaram o transporte e afetaram comunidades ribeirinhas, evidenciando impactos severos das mudanças climáticas na região.
O ano de 2023 entrou para a história brasileira pelos piores motivos: registrou a maior chuva em 24 horas já documentada no país, uma seca amazônica sem precedentes e uma sequência devastadora de ciclones no Rio Grande do Sul. O saldo trágico ultrapassou 120 vítimas fatais e alertou a população sobre uma realidade inescapável: as mudanças climáticas chegaram ao Brasil.
Um estudo publicado nos Anais da Academia de Ciências de Nova York, conduzido por 19 pesquisadores brasileiros, finalmente esclarece os mecanismos atmosféricos por trás dessa onda de desastres. A pesquisa, liderada pela professora Luana Pampuch, da Unesp de São José dos Campos, revela como o El Niño, combinado ao aquecimento global, criou condições perfeitas para uma tempestade catastrófica de eventos extremos.
Litoral paulista: a maior chuva da história
Na madrugada de 18 para 19 de fevereiro de 2023, o litoral norte de São Paulo viveu seu pior pesadelo climático. Em apenas 24 horas, Bertioga registrou 682,8 mm de precipitação – um recorde nacional absoluto. O resultado: 65 mortos e 338 pessoas desabrigadas.
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O fenômeno começou quando uma massa de ar frio do Oceano Atlântico colidiu com o ar quente sobre o litoral. Esse encontro, comum na região, tornou-se catastrófico devido a condições anormais: as águas do Atlântico estavam entre 1°C e 2°C mais quentes que o usual, criando mais vapor d’água para alimentar as tempestades.
“O ar quente, ao ser empurrado para cima pela frente fria, esfria e perde capacidade de reter umidade. Com oceanos mais quentes, há mais vapor disponível, resultando em chuvas extremamente volumosas”, explica o estudo.
A Serra do Mar intensificou ainda mais o desastre. Seu relevo íngreme força o ar úmido a subir rapidamente, provocando as chamadas chuvas orográficas. Somado ao aquecimento oceânico – 0,9°C acima da média pré-industrial devido aos gases de efeito estufa – o cenário tornou-se explosivo.
Rios voadores alimentaram a tragédia
Outro fator crucial foram os “rios voadores”, tecnicamente conhecidos como jatos de baixos níveis sul-americanos. Esses fluxos atmosféricos transportam umidade da Amazônia para o sul do Brasil, mas são bloqueados pela Cordilheira dos Andes e redirecionados, intensificando precipitações em regiões específicas.
“Não fizemos análises de atribuição específicas neste artigo, mas o aumento na frequência e intensidade de eventos climáticos extremos é compatível com um planeta em aquecimento”, afirma Camila Carpenedo, líder do Núcleo de Estudos sobre Variabilidade e Mudanças Climáticas da UFPR.
Amazônia: quando os rios secaram
Enquanto o Sudeste afogava em chuvas, a Amazônia sufocava na seca. Em 2023, o rio Amazonas despencou de 15,80 metros para apenas 12,70 metros em Manaus – mínima histórica que paralisou o transporte fluvial e devastou comunidades ribeirinhas.

O culpado principal foi o El Niño, fenômeno climático cíclico registrado desde 1578. Durante episódios de El Niño, os ventos alísios enfraquecem, impedindo que águas quentes do Pacífico se desloquem para oeste. Isso altera drasticamente os padrões de circulação atmosférica global.
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Em condições normais, as águas quentes do Pacífico concentram-se próximo à Ásia, criando uma zona de baixa pressão com muitas nuvens e chuvas sobre a Amazônia. Durante o El Niño, essas águas quentes permanecem próximas à costa das Américas, deslocando a zona chuvosa e deixando a região amazônica sob alta pressão atmosférica – sinônimo de céu limpo e seca prolongada.
“Atmosfera e oceano estão conectados. Há um acoplamento entre as duas coisas”, destaca Luana Pampuch.
O aquecimento global amplifica esse processo. Quanto mais quente a Terra, mais intensas são as variações provocadas pelo El Niño, gerando estiagens mais severas onde já se espera seca e chuvas mais violentas onde já chove naturalmente.
A reversão climática provocada pelo El Niño também gerou uma zona de alta pressão sobre o Centro-Oeste brasileiro, resultando na temperatura mais alta já registrada no país: 44,8°C em Araçuaí (MG), em 19 de novembro de 2023.
Rio Grande do Sul: quatro ciclones devastadores
Entre junho e outubro de 2023, o Rio Grande do Sul enfrentou quatro ciclones extratropicais notáveis, deixando um rastro de destruição que prenunciava a megaenchente de 2024.
O primeiro, em junho, foi o mais letal: despejou 80% da precipitação mensal esperada em poucas horas, matou 16 pessoas e desabrigou 10 mil. Em setembro, outro ciclone atingiu 106 cidades, especialmente o Vale do Taquari, fazendo 54 vítimas fatais e afetando 359 mil pessoas.

A localização geográfica do Rio Grande do Sul o coloca próximo à frente polar – a fronteira turbulenta entre o ar gelado da Antártida e o ar quente dos trópicos. Essa zona, localizada entre os paralelos 30° e 60°, é berço natural de ciclones extratropicais.
Diferente dos furacões tropicais, esses ciclones formam-se quando massas de ar frio e quente colidem, criando áreas de baixa pressão que funcionam como um “ralo” atmosférico, sugando ar ao redor e gerando redemoinhos gigantes de nuvens.
“O espaço de tempo entre um ciclone e outro vai ser maior com o aquecimento global, então a atmosfera acumula mais energia. Além disso, ar mais quente armazena mais vapor de água, resultando em chuvas mais intensas”, explica Luiz Felippe Gozzo, professor de Meteorologia da Unesp Bauru.
O futuro é preocupante
As projeções científicas são alarmantes. Caso o planeta atinja 2°C acima dos níveis pré-industriais até 2100, trajetória provável nas políticas atuais, todos os fenômenos de 2023 se intensificarão.
Os números projetados impressionam:
- Chuvas fortes: 1,7 vezes mais frequentes e 14% mais intensas
- Estiagens: 2,4 vezes mais comuns
- Ciclones: menos frequentes, porém significativamente mais intensos
“A América do Sul deve enfrentar eventos extremos mais intensos e contrastantes, com chuvas mais fortes em algumas regiões e secas mais longas em outras, impactando agricultura, recursos hídricos, biodiversidade e aumentando a vulnerabilidade social”, alertam Gozzo e Pampuch.
Vale lembrar: 2024 já ultrapassou pontualmente a marca de 1,5°C de aquecimento (1,55°C), demonstrando que o futuro previsto pelos cientistas está se tornando presente mais rápido do que esperado.
Entendendo as emissões: de 1850 a hoje
O ponto de referência para medir o aquecimento global é o período entre 1850 e 1900, quando já havia industrialização, mas em escala insuficiente para afetar o clima perceptivelmente. Nessa época, a humanidade havia emitido apenas 12 gigatoneladas de carbono desde a Revolução Industrial.
Entre 1901 e 2013, porém, as emissões dispararam para 380 gigatoneladas – mais de 30 vezes o total anterior. O resultado: a maior parte do aquecimento global aconteceu no século 20 e continua acelerando no século 21.
A complexidade da atribuição climática
Determinar a parcela exata de responsabilidade do aquecimento global em cada evento extremo é um desafio científico complexo. Fenômenos atmosféricos funcionam como dominós: uma pequena alteração em um parâmetro pode desencadear reações catastróficas em cadeia.
“Nem todo evento extremo ocorre por causa do aquecimento global”, reconhecem os pesquisadores. Mas o padrão é inegável: os eventos estão ficando mais frequentes, mais intensos e mais imprevisíveis.
Enquanto meteorologistas trabalham para decifrar esse quebra-cabeça climático, a responsabilidade pela prevenção recai sobre governos, empresas e sociedade. Infelizmente, as medidas tomadas até agora ainda estão muito aquém do necessário para evitar tragédias ainda piores nas próximas décadas.
Com informações do Jornal da Unesp – Bruno Vaiano