Resumo da notícia
- Estudo publicado na The Lancet revela que grandes corporações de ultraprocessados usam lobby, doações políticas e disputas judiciais para bloquear regulamentações que ameaçam seus lucros e manter seus produtos no mercado global.
- O consumo de ultraprocessados cresce rapidamente no mundo, substituindo alimentos naturais e prejudicando a saúde pública, com aumentos expressivos em países como Espanha, China, México, Brasil, EUA e Reino Unido.
- Carlos Augusto Monteiro, da USP, pioneiro na pesquisa sobre ultraprocessados, destaca que o avanço desses alimentos é impulsionado por estratégias agressivas de marketing e lobby que impedem políticas públicas de alimentação saudável.
- Com vendas globais de US$ 1,9 trilhão, a indústria de ultraprocessados é a mais lucrativa no setor alimentício, financiando um ciclo que prioriza lucros acima da saúde pública, dificultando ações regulatórias eficazes.
A batalha contra os ultraprocessados não será vencida facilmente. Um estudo monumental publicado na revista científica The Lancet acaba de jogar luz sobre algo que muita gente já desconfiava: grandes corporações do setor alimentício usam táticas sofisticadas para bloquear regulamentações e garantir que seus produtos continuem dominando as prateleiras. E nossas mesas.
O trabalho reúniu 43 cientistas de vários países, liderados por pesquisadores do Brasil, Austrália e Chile. E o diagnóstico é claro: o crescimento explosivo do consumo de ultraprocessados representa um desafio urgente para a saúde pública mundial. Mas enfrentar esse problema vai exigir muito mais do que campanhas educativas ou apelos à “responsabilidade individual”.
“Estratégias políticas são implementadas para bloquear a regulamentação governamental e suprimir a oposição, garantindo a continuidade do crescimento” do mercado de ultraprocessados, afirmam os autores. A tática envolve uma rede global de grupos de interesse corporativos, com lobby pesado, doações políticas e até disputas judiciais.
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O pioneiro brasileiro que mudou o jogo
Carlos Augusto Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, é reconhecido internacionalmente como pioneiro na pesquisa sobre ultraprocessados. Foi ele e sua equipe do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) quem cunhou o próprio conceito, em 2009.
“O consumo crescente de alimentos ultraprocessados está reestruturando as dietas no mundo inteiro, substituindo alimentos in natura e minimamente processados”, explica Monteiro. E não para por aí: “Essa mudança na forma como as pessoas se alimentam é impulsionada por grandes corporações globais, que obtêm lucros extraordinários priorizando produtos ultraprocessados, apoiadas por fortes estratégias de marketing e lobby político que bloqueiam políticas públicas de promoção da alimentação adequada e saudável.”
Os números do estudo impressionam. Na Espanha, a participação dos ultraprocessados nas calorias consumidas triplicou nas últimas três décadas – saltou de 11% para 32%. Na China, o aumento foi ainda mais dramático proporcionalmente: de 4% para 10%. No México e no Brasil, o consumo mais que dobrou em quatro décadas, passando de 10% para 23%.
Já nos Estados Unidos e Reino Unido, o cenário é ainda mais preocupante: o consumo se manteve acima de 50% nas últimas duas décadas, com leve crescimento.
A conta que não fecha: lucro vs. saúde
Com vendas anuais globais de US$ 1,9 trilhão, os ultraprocessados representam o setor mais lucrativo da indústria alimentícia. Os fabricantes respondem por mais da metade dos US$ 2,9 trilhões distribuídos a acionistas por todas as empresas de alimentos de capital aberto desde 1962.

Esses lucros estratosféricos alimentam um ciclo vicioso: quanto mais as empresas lucram, mais poder elas acumulam para influenciar políticas, expandir produção e moldar dietas em escala global. É um sistema alimentar impulsionado pelo lucro corporativo, não pela nutrição ou sustentabilidade.
“Essas empresas costumam se apresentar como parte da solução, mas suas ações contam outra história, centrada em proteger lucros e resistir à regulação efetiva”, afirma Simon Barquera, pesquisador do Instituto Nacional de Saúde Pública do México.
O que está em jogo: sua saúde
O primeiro artigo da série revisou todas as evidências científicas sobre ultraprocessados desde que o termo foi criado. E os resultados são alarmantes.
Uma revisão sistemática conduzida especialmente para o trabalho analisou 104 estudos de longo prazo. Desses, 92 relataram risco aumentado de uma ou mais doenças crônicas. As associações foram significativas para 12 condições de saúde, incluindo obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, depressão e morte precoce por todas as causas.
Ultraprocessados são produtos industrializados feitos a partir de ingredientes baratos – gorduras hidrogenadas, isolados proteicos, xarope de glicose e frutose – combinados com aditivos cosméticos como corantes, adoçantes artificiais e emulsificantes. As empresas projetam e comercializam esses produtos especificamente para substituir alimentos in natura e refeições tradicionais, com um objetivo claro: maximizar lucros.
Assim, as evidências mostram que dietas ricas nesses alimentos estão associadas à ingestão excessiva de calorias, pior qualidade nutricional, excesso de açúcar e gorduras não saudáveis, baixo teor de fibras e proteínas, e maior exposição a aditivos e substâncias químicas nocivas.
“Embora o debate científico seja bem-vindo, é importante distinguir discussões legítimas de tentativas de grupos com interesses econômicos de enfraquecer as evidências existentes”, destaca a professora Mathilde Touvier, do Instituto Nacional Francês de Saúde e Pesquisa Médica. “O crescente corpo de pesquisas indica que dietas ricas em ultraprocessados estão prejudicando a saúde em escala global.”
A solução existe, mas precisa de coragem política
Portanto, os pesquisadores não apenas diagnosticaram o problema. Eles apresentaram uma agenda concreta com propostas de regulação governamental, mobilização comunitária e ampliação do acesso a dietas saudáveis e economicamente viáveis.
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“Enfrentar esse desafio exige que os governos ajam com coragem e coordenação, adotando medidas políticas amplas, desde incluir indicadores de ultraprocessados nos rótulos frontais até restringir a publicidade e implementar impostos sobre esses produtos, de modo a financiar o acesso a alimentos nutritivos e acessíveis”, explica Camila Corvalán, professora da Universidade do Chile.
Entre as propostas estão:
- Rotulagem mais rigorosa: incluir ingredientes que caracterizam os ultraprocessados, como corantes, aromatizantes e adoçantes, nos rótulos frontais das embalagens, junto aos marcadores de excesso de gordura saturada, açúcar e sal. “Essa medida evitaria substituições de ingredientes igualmente prejudiciais e permitiria uma regulação mais eficaz”, afirma Barry Popkin, professor da Universidade da Carolina do Norte.
- Restrições à publicidade: proibições mais rigorosas a anúncios direcionados a crianças, à mídia digital e à publicidade por marca. Além disso, os autores propõem proibir ultraprocessados em instituições públicas como escolas e hospitais, e limitar sua exposição e espaço nas prateleiras de supermercados.
- Taxação estratégica: taxar determinados ultraprocessados para financiar subsídios a alimentos frescos destinados a famílias de baixa renda.
Brasil mostra que é possível
Um exemplo bem-sucedido já está em curso no Brasil. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) eliminou a maior parte dos ultraprocessados das escolas públicas e exigirá que, até 2026, 90% dos alimentos oferecidos sejam frescos ou minimamente processados.
O Chile também integrou rótulos de advertência na frente da embalagem de alimentos não saudáveis com restrições à sua comercialização, incluindo a proibição de publicidade na televisão das 6 às 22 horas, e de sua venda ou promoção em escolas.
“Essas políticas, juntamente com outras mudanças importantes, devem ser fortalecidas, coordenadas de forma mutuamente reforçadora e estendidas a mais países”, defendem os autores.
A hora de agir é agora
Phillip Baker, pesquisador da Universidade de Sidney, não usa meias palavras: “Precisamos de uma resposta global forte e articulada à saúde pública, semelhante aos esforços que enfrentaram a indústria do tabaco. Isso inclui proteger o processo político do lobby corporativo e construir coalizões poderosas para defender sistemas alimentares saudáveis, justos e sustentáveis, capazes de enfrentar o poder das grandes corporações.”
Karen Hoffman, professora da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, complementa: “Assim como enfrentamos a indústria do tabaco há décadas, precisamos agora de uma resposta global ousada e coordenada para conter o poder desproporcional das corporações de ultraprocessados e construir sistemas alimentares que priorizem a saúde e o bem-estar das pessoas.”
Os autores reconhecem que existem críticas científicas válidas sobre a classificação e o conceito de ultraprocessados. Como a falta de ensaios clínicos de longo prazo e o conhecimento ainda emergente sobre os mecanismos envolvidos. Mas eles sublinham que as pesquisas sobre o tema continuarão. E que o que já existe de evidência é mais do que suficiente para apoiar a implantação de políticas de saúde que abordem o problema.
“É fundamental garantir que alimentos frescos e minimamente processados sejam acessíveis e economicamente viáveis, não apenas para quem tem tempo para cozinhar, mas também para famílias e indivíduos com rotinas mais intensas”, aponta Gyorgy Scrinis, professor da Universidade de Melbourne. “Somente combinando uma regulação mais firme dos produtos de baixa qualidade com o apoio concreto a escolhas mais nutritivas poderemos promover dietas melhores para todos.”
Uma nova visão para o sistema alimentar
Enfrentar os alimentos ultraprocessados requer uma nova visão para os sistemas alimentares, capaz de valorizar produtores locais diversos, preservar tradições alimentares culturais, promover equidade de gênero e garantir que os benefícios econômicos da produção de alimentos retornem às comunidades – não apenas aos acionistas.
“Vivemos hoje em um mundo onde nossas escolhas alimentares são cada vez mais dominadas pelos ultraprocessados. O que contribui para o aumento global da obesidade, diabetes e dos problemas de saúde mental”, conclui Baker. “Nosso estudo mostra que um caminho diferente é possível. Um caminho em que governos regulamentam com eficácia, comunidades se mobilizam e dietas saudáveis tornam-se acessíveis e viáveis para todos.”
Entre as estratégias para mobilizar uma resposta global de saúde pública, os autores sugerem o estabelecimento de uma rede global de ação contra alimentos ultraprocessados para coordenar ações e o financiamento de coalizões nacionais para se engajarem em negociação política, comunicação, aspectos legais e pesquisa.
“As recentes conquistas em defesa de direitos e políticas públicas, especialmente na América Latina e na África Subsaariana, oferecem lições importantes para ampliar a ação em outros lugares”, concluem os pesquisadores.
A série da The Lancet sobre “Alimentos Ultraprocessados e Saúde Humana” contou com financiamento da Bloomberg Philanthropies. E deixa um recado claro: a hora de agir contra o poder desproporcional das corporações de alimentos é agora. Antes que seja tarde demais.