USP e Unicamp descobrem papel protetor do selênio em populações da Amazônia
Foto: Polícia Federal/divulgação via EBC/Agência Brasil

A resposta para um dos maiores problemas ambientais da Amazônia pode estar justamente no prato dos ribeirinhos. Enquanto o garimpo ilegal contamina rios com mercúrio, a mesma dieta baseada em peixe que expõe essas comunidades ao metal tóxico parece também protegê-las dos seus efeitos devastadores.

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O segredo? O selênio, um mineral essencial encontrado principalmente na carne de peixes e na castanha do Brasil. Segundo estudo publicado recentemente na revista científica Chemosphere, esse elemento pode estar funcionando como um verdadeiro antídoto natural contra a intoxicação por mercúrio.

O paradoxo do peixe amazônico

Para os ribeirinhos que vivem nas bacias dos rios Tapajós e Amazonas, no Pará, o peixe não é opcional — ele representa 80% da proteína consumida diariamente. Isso significa exposição constante ao mercúrio, já que o metal usado para separar ouro no garimpo contamina os peixes através da água.

Mas aqui surge o paradoxo: mesmo com níveis altíssimos de mercúrio no organismo, essas populações não apresentam os sintomas esperados de intoxicação. A explicação pode estar nos também elevados níveis de selênio que eles consomem naturalmente.

“Esta é a maior coorte humana rastreando mercúrio e selênio nessas populações amazônicas”, explica Gabriel Neves Cezarette, pesquisador da USP Ribeirão Preto e da Université de Pau et des Pays de l’Adour, na França. Ele destaca que essas comunidades estão “entre as mais impactadas pelo mercúrio” mas, curiosamente, apresentam “valores distintos de selênio no sangue, geralmente entre os mais altos do mundo”.

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Como foi feito o estudo

A pesquisa coordenada pelo professor Fernando Barbosa Júnior, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da USP, analisou 1.089 adultos de 13 comunidades ribeirinhas. De forma pioneira, a equipe coletou e examinou três tipos de amostras: sangue, plasma e urina.

Cada uma dessas análises revelou informações complementares. O sangue mostra a carga recente de mercúrio e selênio no corpo. O plasma indica quanto desses elementos está biodisponível. Ou seja, circulando livremente e capaz de interagir com tecidos. Já a urina oferece um panorama da excreção, principalmente do mercúrio inorgânico.

As amostras foram processadas por espectrometria de massas com plasma indutivamente acoplado, uma técnica tão sensível que consegue detectar elementos químicos mesmo em concentrações mínimas.

Descobertas que desafiam expectativas

Os resultados trouxeram surpresas. Pesquisadores encontraram diferentes níveis de mercúrio nos indivíduos dependendo da frequência com que comiam peixe — o que era esperado. Mas os níveis de selênio se mantiveram consistentemente altos em todas as comunidades estudadas, independente da dieta específica de cada uma.

Mais intrigante ainda: apesar dos valores extremamente elevados de selênio (que em outras circunstâncias causariam selenose, com sintomas como queda de cabelo, fragilidade de unhas, problemas gastrointestinais e até danos renais), nenhum dos participantes apresentou esses problemas.

“As correlações positivas das concentrações de mercúrio encontradas no sangue e plasma e excretadas pela urina são explicadas pela interação com os níveis, também altos, de selênio”, acredita Cezarette.

A ciência por trás da proteção

Um segundo estudo, conduzido em parceria com a Unicamp e liderado pela professora Ljubica Tasic, foi além e aplicou uma abordagem inédita em metabolômica, o estudo de pequenas moléculas no organismo.

Os cientistas descobriram que subgrupos com níveis mais elevados de selênio apresentaram mudanças significativas no perfil metabólico. Indivíduos altamente expostos ao mercúrio, mas com bastante selênio no corpo, tinham um metabolismo mais parecido com pessoas que exibiam baixas concentrações de ambos elementos.

Cezarette explica que isso provavelmente está “relacionado à formação de complexos entre o mercúrio-selênio e à atuação de selenoproteínas em mecanismos de defesa antioxidante”. Selenoproteínas são proteínas especiais que contém selênio em sua estrutura e são essenciais para manter a saúde humana funcionando adequadamente.

Por que isso importa

O mercúrio orgânico presente nos peixes é um neuro tóxico potente. Ele se liga às proteínas do organismo humano, provocando estresse oxidativo, disfunção mitocondrial e danos ao sistema nervoso central. Exposições crônicas também causam problemas cardiovasculares, imunológicos e alterações no metabolismo energético.

“Medir simultaneamente essas matrizes pode ajudar a compreender a dinâmica de absorção, distribuição e excreção, além de identificar possíveis interações que existam entre o mercúrio e o selênio no organismo”, explica o professor Barbosa Junior.

Da ciência para as comunidades

Após concluir o estudo, os pesquisadores não ficaram apenas nos laboratórios. Eles voltaram às comunidades ribeirinhas para campanhas de conscientização.

“Preparamos alguns flyers, algumas palestras em uma linguagem mais acessível para que eles conheçam um pouco mais sobre a problemática do mercúrio, sobre as perspectivas que temos em relação a como diminuir esses efeitos tóxicos”, conta Cezarette.

Para Barbosa Junior, os resultados “fornecem subsídios para políticas públicas de saúde e segurança alimentar, destacando a necessidade de monitoramento contínuo da exposição ao mercúrio e manutenção adequada de selênio na dieta”.

Os pesquisadores já planejam complementar esses achados com técnicas ainda mais avançadas para identificar as possíveis interações entre mercúrio, selênio e outras moléculas do organismo humano.

Enquanto isso, a descoberta reforça a importância de estratégias de comunicação de risco e programas de vigilância ambiental e nutricional que podem proteger comunidades vulneráveis. Especialmente enquanto o garimpo ilegal continuar contaminando os rios amazônicos.

A natureza, ao que tudo indica, já havia fornecido uma solução parcial para o problema que o próprio ser humano criou. Agora cabe à ciência entender completamente esse mecanismo e às políticas públicas garantir que essas populações continuem tendo acesso a uma alimentação que, paradoxalmente, as expõe e protege ao mesmo tempo.

Matéria do Jornal da USP, de autoria de Carol Castro