Resumo da notícia
- Ribeirinhos da Floresta Nacional de Caxiuanã substituem alimentos tradicionais por industrializados, como arroz branco e refrigerantes, impactando negativamente a saúde e a cultura local, segundo estudo da USP.
- O consumo de gorduras e proteínas industrializadas aumentou drasticamente nas últimas duas décadas, elevando riscos de obesidade, hipertensão e diabetes, especialmente entre mulheres das comunidades.
- O conceito de "nutricídio" descreve a perda da alimentação saudável e identitária dessas populações, que perdem a conexão cultural e afetiva com seus alimentos tradicionais.
- Políticas públicas falham ao distribuir cestas básicas e merendas escolares ricas em ultraprocessados, desconsiderando a cultura alimentar ribeirinha e agravando os problemas nutricionais.
Ribeirinhos da Floresta Nacional de Caxiuanã, no Pará, consomem cada vez menos peixe, farinha de mandioca e frutas locais. No lugar desses alimentos tradicionais, arroz branco, macarrão instantâneo, refrigerantes e óleo vegetal dominam a mesa das famílias. Um estudo do Instituto de Biociências (IB) da USP documenta essa transformação radical e aponta consequências graves para a saúde e a cultura dessas comunidades.
A bioantropóloga Mariana Inglez conduziu a pesquisa entre 2019 e 2023, conquistando o prêmio Tese Destaque USP na categoria Inclusão Social e Cultural. Os números revelam uma mudança drástica: o consumo de gorduras provenientes de alimentos comprados saltou de 21% para 71% em duas décadas. Proteínas e carboidratos industrializados também triplicaram na dieta local.
Nutricídio ameaça identidade cultural
O termo “nutricídio” define esse processo. O médico Llaila O Afrika criou o conceito em 1993 para descrever como populações marginalizadas perdem acesso a uma alimentação saudável. A pesquisa mostra que essa perda vai além da nutrição e atinge a identidade cultural.
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“Quando falo nessa transição nutricional, estou falando da substituição de alimentos que fazem parte da identidade de um povo, que têm uma relação com o ambiente e uma relação com aspectos simbólicos, culturais e afetivos. Geralmente são alimentos muito mais saudáveis”, explica Mariana ao Jornal da USP.
Mara, moradora de uma das comunidades estudadas, confirma a mudança. “Antes a gente consumia basicamente alimentos naturais, por exemplo, o peixe que a gente pescava, a caça, a farinha que produzimos aqui mesmo. No café da manhã, tomava com uma farinha de tapioca ou uma tapioquinha. Hoje em dia, houve um avanço na questão da alimentação industrializada”, relata. O Jornal da USP optou por não identificar seu sobrenome e a comunidade onde vive para preservar sua segurança e privacidade.
Mulheres sofrem mais com transição alimentar
Mariana analisou 177 participantes entre adultos, jovens e crianças. Todos ganharam peso nas últimas duas décadas, mas as mulheres enfrentam os piores impactos. Elas apresentam maior risco de desenvolver hipertensão, obesidade e diabetes.
“Geralmente as mulheres deixam ‘as melhores partes’ para os parceiros e para as crianças. Então, são as primeiras que vão enfrentar a insegurança alimentar e aí, consecutivamente, as que mais vão consumir alimentos ultraprocessados, que não têm tanto poder nutritivo, mas que são mais calóricos”, afirma a pesquisadora.
Políticas públicas inadequadas agravam problema
A pesquisa aponta falhas nas políticas de alimentação. Cestas básicas distribuídas às comunidades contêm majoritariamente ultraprocessados, incompatíveis com a cultura alimentar ribeirinha. A merenda escolar repete o erro, contrariando as orientações do Guia Alimentar para a População Brasileira (GAPB).
O Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP desenvolveu o guia em 2014, junto com o Ministério da Saúde. O documento orienta profissionais e políticas públicas sobre alimentação saudável, mas suas recomendações não chegam adequadamente às comunidades tradicionais.
A pandemia de covid-19 agravou a insegurança alimentar. A crise interrompeu cadeias de abastecimento e fontes de renda locais. “Os povos tradicionais, negros, afro-indígenas, ribeirinhos e periféricos foram grupos mais vulneráveis durante a pandemia”, diz Mariana. Para ela, o sistema atual perpetua desigualdades que começaram na prática colonial.
Mudanças climáticas reduzem disponibilidade de alimentos locais
A crise climática adiciona mais um obstáculo. Chuvas diminuem, temperaturas sobem e a produção agrícola encolhe. Os rios oferecem menos peixes. As comunidades encontram cada vez mais dificuldade para depender exclusivamente dessas fontes.

“Hoje em dia o feijão que vem é industrializado, mas antes a gente comia o feijão que plantávamos, [atualmente] raramente se planta aqui na nossa comunidade”, conta Mara.
Ribeirinhos ainda preferem alimentação tradicional
Mariana comparou seus dados com informações coletadas entre 2002 e 2009 por Bárbara Piperata, referência em antropologia nutricional na Amazônia. A pesquisadora conviveu diretamente com as comunidades durante quatro anos e constatou que a preferência local permanece inalterada.
“Existe uma percepção local do que é uma comida de verdade que faz bem para a saúde, e não é comida ultraprocessada. Então, quando existe a possibilidade de escolher, vão comer um peixe cozido com farinha”, afirma.
A tese “Transição nutricional em comunidades ribeirinhas da Amazônia brasileira: ‘escolhas’ entre alimentos tradicionais e industrializados na região de Caxiuanã, Pará, Brasil” defende uma abordagem biocultural. O professor Rui Sérgio Sereni Murrieta orientou o trabalho no Programa de Pós-Graduação em Ciências (Genética e Biologia Evolutiva) do IB-USP.
A pesquisa integra dimensões biológicas, socioculturais, econômicas e ambientais para compreender alimentação, saúde e modos de vida na região. Adota um ponto de vista decolonial que valoriza a vivência das populações ribeirinhas e as coloca no centro do debate sobre saúde humana e ambiental.