Pesquisadores da Unesp identificam praga resistente a defensivos agrícolas que já ataca lavouras em todo o país
Foto: Rodrigo Souza Santos Samara Araújo da Silva/ Creative Commons Licence (CC-By

Uma nova espécie de cigarrinha que ataca lavouras de cana-de-açúcar foi identificada por pesquisadores brasileiros após produtores rurais relatarem resistência da praga aos defensivos químicos tradicionais. A descoberta, publicada no periódico científico Bulletin of Entomological Research da Universidade de Cambridge, representa um avanço crucial para o combate às ameaças que afetam uma das culturas mais importantes da economia nacional.

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O inseto foi batizado de Mahanarva diakantha, termo que significa “dois espinhos”. E já foi encontrado em plantações de cana-de-açúcar em diversas regiões do Brasil. Cientistas do Instituto de Biociências da Unesp em Rio Claro e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul identificaram a espécie em colaboração.

Problema nas lavouras motivou a pesquisa

A investigação começou há uma década, quando empresas agrícolas procuraram o professor Diogo Cavalcanti Cabral-de-Mello, do Departamento de Biologia Geral e Aplicada da Unesp, relatando dificuldades no controle de cigarrinhas nas plantações. Os defensivos aplicados não apresentavam a eficácia esperada, gerando prejuízos significativos.

Inicialmente, suspeitou-se que os insetos tivessem desenvolvido resistência aos produtos químicos. Porém, uma pesquisadora da Embrapa em Araras formulou uma hipótese diferente: poderia ser uma espécie ainda não catalogada pela ciência.

Metodologia combinou análise genética e morfológica

Para confirmar a descoberta, os pesquisadores adotaram duas abordagens complementares. A equipe da PUC-RS, liderada por Andressa Paladini e Gervásio Silva Carvalho, realizou análises morfológicas detalhadas. Enquanto isso, o grupo da Unesp conduziu estudos genéticos utilizando marcadores de DNA presentes nas mitocôndrias dos insetos.

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Mais de 300 indivíduos coletados entre 2012 e 2015 em usinas de cana-de-açúcar foram examinados. A análise genética revelou diferenças significativas em relação às espécies conhecidas de cigarrinha-da-raiz, como a Mahanarva fimbriolata e a Mahanarva spectabilis.

O estudo morfológico identificou uma característica distintiva na genitália dos machos: uma estrutura bifurcada e pontiaguda, diferente do formato quadrangular não bifurcado presente nas outras espécies. Essa particularidade inspirou o nome científico do novo inseto.

Impacto econômico da cana-de-açúcar no Brasil

A cana-de-açúcar é fundamental para a economia brasileira. Em 2020, o setor gerou receita de aproximadamente US$ 8,7 bilhões em exportações. O Brasil produz cerca de 700 milhões de toneladas anuais da cultura desde 2010, sendo o maior exportador mundial de açúcar. Além disso, a planta é essencial para a produção de etanol e geração de energia a partir da queima do bagaço.

As cigarrinhas-da-raiz representam uma das principais ameaças às plantações. Esses pequenos insetos de coloração marrom-avermelhada se alimentam da seiva da cana e transmitem toxinas que provocam a queima das folhas e perda de sacarose. Estima-se que a infestação possa causar prejuízos de até 36 toneladas por alqueire.

Próximos passos para controle da praga

A identificação da M. diakantha é apenas o primeiro passo. Segundo o professor Cabral-de-Mello, quando se trata de combater pragas agrícolas, as substâncias utilizadas podem ter ação direcionada para espécies específicas. Mesmo entre espécies próximas, um produto pode ser eficaz contra uma e ineficaz contra outra.

Após a descrição inicial, a pesquisadora Andressa Paladini revisou coleções da Universidade Federal do Paraná e descobriu registros da década de 1960 de espécimes da nova espécie classificados incorretamente como M. fimbriolata. Isso sugere que o inseto pode estar presente nas lavouras há décadas sem o devido reconhecimento.

Os próximos desafios envolvem compreender aspectos biológicos, populacionais e taxas reprodutivas da nova espécie, além de analisar amostras mais recentes, já que o cultivo de cana-de-açúcar mudou significativamente desde 2015.

Controle biológico como alternativa

Atualmente, o método mais utilizado para combater cigarrinhas é o controle biológico com o fungo Metarhizium anisopliae. O fungo é cultivado em laboratório, geralmente sobre grãos de arroz, e aplicado nas plantações misturado com água. Por ser um produto seletivo, ataca apenas insetos e não oferece riscos à cana ou ao ser humano.

Odair Aparecido Fernandes, professor da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp em Jaboticabal e líder do Centro de Pesquisa em Engenharia – Fitossanidade em Cana-de-Açúcar, acredita que as ferramentas de controle biológico continuarão eficazes. No entanto, será necessário avaliar o impacto dessas técnicas especificamente sobre a M. diakantha.

Sequenciamento genômico promete agricultura de precisão

O professor Cabral-de-Mello orienta atualmente uma pesquisa de doutorado que pretende realizar o sequenciamento genômico completo das três espécies de cigarrinha. Pela similaridade entre elas, a hipótese é que a separação evolutiva ocorreu nos últimos 100 mil anos.

O sequenciamento do genoma abre possibilidades para o desenvolvimento de uma agricultura de precisão, permitindo identificar variações genéticas e estudar como elas afetam o controle de insetos. Assim, será possível desenvolver técnicas personalizadas para combater diferentes pragas de forma mais eficiente.

Outras ameaças à cultura da cana

Além das cigarrinhas, a cultura da cana-de-açúcar enfrenta outras duas grandes ameaças no Brasil. A primeira é a síndrome do murchamento da cana, causada pela combinação de fatores climáticos, como seca e mudanças no clima, com fatores biológicos, como fungos e pragas. A doença pode reduzir a safra em até 40%.

A segunda ameaça é o bicudo-da-cana, um besouro que se alimenta do tecido vegetal e causa perdas de cerca de 25 toneladas por hectare. O inseto tem se espalhado devido ao método mecanizado de colheita, que mantém a palha da cana no solo — prática benéfica para conservação da umidade, mas que favorece a proliferação da praga.

Colaboração entre universidade e setor privado

O professor Cabral-de-Mello destaca que os resultados alcançados só foram possíveis graças à colaboração entre universidades e o setor privado. Aliás, o próprio Centro de Pesquisa em Fitossanidade em Cana-de-Açúcar é um exemplo dessa cooperação, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e pelo Grupo São Martinho.

O centro desenvolve atualmente 55 projetos na área de saúde vegetal e manejo de pragas, muitos em parceria direta com o setor produtivo e as indústrias sucroalcooleiras, demonstrando como a ciência básica pode contribuir para resolver problemas práticos da agricultura brasileira.